quarta-feira, 24 de junho de 2015

Memória

Ninguém se lembra da história da ladeira da memória. Talvez poucos saibam onde fica, até mesmo quem se senta em um dos 17 degraus da escadaria ou passa um tempo parado em frente à fonte seca, decorada com azulejos que remetem à escravatura.

Na ladeira da memória, em uma tarde de quarta-feira, três jovens com os rostos pintados como palhaço comem pão e presunto com a fome voraz da primeira refeição do dia, talvez comprada com o que sobrou do ganho do dia, menos o custo do aluguel.

Eles estão de costas para um grupo de 6 bailarinos (5 mulheres e 1 homem) que faz uma performance nas escadarias da fonte, em frente a um obelisco. Eles se contorcem, levantam os braços, abaixam o corpo, balançam a cabeça, elevam as pernas. Ninguém nota. Os que notam, pouco se importam.

Em outro canto da ladeira, cinco homens conversam e riem enquanto fazem um cigarro. Outro grupo fica encostado à fonte, segurando caixas desmontadas de papelão e capas de celulares pirata penduradas nesta estranha vitrine reciclada. Talvez estejam esperando a fiscalização ir embora do ponto na rua acima, na Xavier de Toledo, Centro de São Paulo.

Ninguém se lembra da história da ladeira da memória. Ninguém se lembra dos que passam pela Ladeira da Memória. Ninguém se lembra. Ninguém se.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Sensatez em meio ao caos

Sensatez em meio ao caos. Como pode me cobrar isso? Cada um com tanta opinião, eu sem saber a minha.  Ele tirou a minha filha, levou para longe, a Justiça me fez perder a guarda. A casa. Meu eixo.

O que se quer de mim, o que se espera de mim, não é o que eu quero ser -- eu não consigo ser quem você quer que eu seja. Estou sozinha. Estou com medo. Eu não quero fracassar. Se eu voltar, se eu for para a cidade em que minha filha está, vai ser difícil. Há brigas em casa, conflito. Há ele. Não há emprego, lugar, espaço, identidade.

Mas, se eu ficar, eu luto. Se eu lutar, eu venço.

Não me importa se, durante a luta, eu for alvejada pela flecha cruel da realidade mundana. Vou morrer, mas vou morrer Santa. Vou morrer, mas vou morrer guerreira. Ninguém sabe como é lá, no meu 'lar' -- um universo psíquico denso, permado por dor, violência -- eu não mereço isso. Ele tirou tudo de mim, eu perdi tudo. Minha vaidade, minha maternidade, minha essência. Mas ele não vai vencer.

Eu vou (sorrio em meio às lágrimas que escorrem pela minha face). Meu sorriso trêmulo molhado pelo choro compulsivo. Quem irá dizer que não tenho razão?

Minha vida é uma bigorna em queda livre. Cai rapidamente. Às vezes sou bigorna, às vezes sou o animal que vai ser espremido quando atingir o solo e, entre o solo e a bigorna, estiver meu corpo -- primeiro ereto, depois massacrado. Moído. Com o sangue se espalhando pelas laterais e o cérebro se esparramando por todos os lados. Estou moída. É injusto, muito injusto. Dói. É abandono e carnificina. E você ainda quer que eu recolha meus pedaços e jogue aos leões?

Uma casa, uma psiqué. Uma casa onde todos moram. Uma psiquê onde todos os monstros habitam. Como voltar sem ter uma corda que me leve de volta à saída do labirinto familiar?

É este o ponto em que cheguei.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Fin(d)o laço

O fino laço do encanto se rompeu.

Uma palavra mal dita (maldita?), um contratempo, um descompasso.

O que faz dois estranhos se disporem a conversar dias a fio sem que se vissem uma única vez¿ E o que os move a continuar conversando depois da primeira caminhada juntos, ladeira acima, ladeira abaixo, curvas e retas, olhares oblíquos?


Fino como o tempo que escorre na ampulheta, nos últimos grãos, quase findo. O laço que os une na cumplicidade do encontro, mas que se desfez. Refaz? Que o tempo seja breve enquanto agoniza o desentendimento. Que o tempo, esse que cura, prevaleça sobre dores sem nome.