Não sou eu. É a Lua que está retrógrada em Peixes e Marte que está em confronto com Netuno. É que eu tento caminhar em linha reta, mas as curvas são mais sedutoras. Você sabia que a graça da vida é não seguir a coreografia? Um dia vi um vídeo na internet de uma garotinha dançando uma apresentação na escola, e ela roubou a cena porque não seguia a coreografia. Ela se divertia, dançava, adorava os sapatos de sapateado, e achava que estava seguindo a coreografia, mas não estava. Ela ria, a plateia ria, eu ri alto vendo a cena. Fiquei tão feliz em lembrar que a graça da vida é sapatear ao léo. ‘Sapateando na cara da sociedade’ poderia ser mais apropriado do que ‘Sambando na cara da sociedade’. Não que eu seja assim, vingativa e provocadora. Sou nada. Mas se dançasse hoje, com essa Lua retrógrada, era capaz de tropeçar e cair. Então vou ficar em casa. Depois a gente se vê.
Tem um vinho na adega e eu vou abrir para relaxar. Não estou nervosa, mas a ideia de relaxar depois de um dia como hoje me agrada. Tenho tido uns dias bons, leves. O trabalho está uma merda, continuo achando que estou desvalorizada, mas me divirto vendo como todo mundo tem suas angústias: você tinha que ver. É fácil saber, basta se concentrar nas pessoas e tentar captar suas angústias. Será? Você acha que sou eu? Eu que vejo a vida assim? Mas se eu a vejo assim, já está bom. Basta a vida ser assim para mim.
O abridor de garrafas que comprei está quebrado. É daqueles que você coloca a rosca, gira, gira, gira, os bracinhos vão abrindo e depois você só aperta os bracinhos de volta para perto do corpinho e a rolha – flupt – sai facinho. Mas ele está quebrado e não quer saber de abrir os bracinhos. O que fazer? Aquele momento em que você pensa: puxa, para isso que serve um homem? Será que desço 13 andares para pedir ao porteiro, às 3h, para abrir o vinho? "Olha, quebrou meu abridor, eu já enrosquei ele aqui, mas não consigo puxar, será que o senhor não abre para mim?" Poderia fazer isso, mas e depois da garrafa aberta?
Uma garrafa de vinho aberta é um perigo. As notas e os aromas flutuando no ar, você lá, sozinha, às 3h na portaria, ele também, sozinho. A educação mandaria oferecer um pouco. "Ah, obrigada por abrir. Quer um pouco?" E sabe-se lá o que ia acontecer. Não é que estou te oferecendo a minha companhia disfarçada de vinho, nem acho que você a queira a essa hora, mas é que preciso oferecer, você é que não pode aceitar. Diz não, vai. Fala não. Flupt. A rolha saiu enquanto eu puxava o abridor sozinha. Não preciso de ninguém para esta tarefa. Talvez Marte e Netuno não estejam mais em confronto.
Posso colocar meus óculos e olhar bem, mas não vou conseguir enxergar o que quer me dizer. Desculpe, não posso. Olha, já te disse que tentei conversar. Uma amiga tradutora me explicou um dia que a dificuldade do trabalho dela é encontrar palavras que significam exatamente a mesma coisa, com o mesmo tom, em línguas diferentes. Ela me disse que nem sempre isso é possível. Agora, imagina traduzir um sentimento, uma ideia, uma sensação… Estamos neste ponto. Somos duas pessoas que falam a mesma língua mas não traduzem seus sentimentos em palavras que conseguimos compreender. Não duvido, eu sei, eu sinto que gosta (ou prefiro pensar que gosta). Aconteceu muita coisa, perdemos o foco. Não é figura de linguagem. Vi na National Geographic que o cérebro nos engana quando o assunto é visão. Ele se concentra em um ponto, faz o foco, e não vê o resto. Se tiver quatro bolas estáticas em uma tela com várias pontos luminosos coloridos e em movimento, e se você olhar só uma dessas bolas estáticas, as demais começam a desaparecer do seu campo de visão. É bem doido. É porque o cérebro entende que as outras bolas que você não está focando não fazem parte do mundo real, e então as apaga. Mas elas ainda estão ali. Nos concentramos nos pontos errados, talvez. Não vimos o resto. Aconteceu que acabou.