terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O crime do refeitório

É manhã quando Clarisse Almeida, 45 anos, psicóloga forense, acorda para mais um dia de trabalho. Ao sair, ela pega a bolsa, as chaves, uma pasta com papeis e parte rumo à estação de metro. Já no trem, Clarisse encontra um lugar para sentar. No trajeto, ela lê o resumo, feito por uma assistente, do caso do paciente que deverá atender.

Trata-se de Inácio Souza, 65 anos, desempregado. Ele janta todos os dias em um refeitório comunitário da prefeitura, no centro da cidade de São Paulo. A comida é, quase sempre, a única que ele tem durante todo o dia. Dorme em um quarto insalubre alugado em um cortiço no Brás. Inácio é acusado de matar a golpes de faca e garfo um outro homem no refeitório. Ele nega e diz que nunca conheceu a vítima. Inácio demonstra sentimentos de humilhação, raiva, e parece desorientado.

Ao ser ouvido pela psicóloga forense, Inácio não levanta os olhos. Ele conta que já teve um emprego estável, de boa remuneração, mas que foi demitido quando sumiu um faqueiro de ouro branco da casa onde trabalhava. Para não ter fichado na polícia, a família que o empregava aceitou receber parte do dinheiro equivalente ao furto (todas as economias de Inácio) e ele foi demitido sem ter direito a seguro-desemprego e férias.

Inácio conta que perdeu muito mais que o emprego: perdeu Rosa, a cozinheira da casa, que tão bem temperava os pratos e o deixava provar a comida com garfadas generosas nas panelas antes que o almoço fosse servido.

A psicóloga pergunta se algum dia Inácio soube o que aconteceu com o faqueiro, e ele diz que suspeitava do motorista da casa, Cléber, que interessado em Rosa poderia ter armado a farsa para tirá-lo de perto. Para Inácio, o pior foi saber que Rosa nunca acreditou na inocência dele.

A psicóloga volta a perguntar sobre o crime e Inácio muda ainda mais o tom de voz. Fala frases desconexas, fica com os olhos vidrados no vazio. Ele ficou pálido. Depois, disse que o homem que morreu era o motorista Cléber. E confessou tê-lo matado, dizendo que mataria de novo se pudesse. Alterado, ele é retirado da sala algemado. A psicóloga passa o olho nos papéis da ocorrência policial e vê o nome da vítima: João Augusto da Silva, 65 anos.

(Baseado em um conto de Fernando Bonassi)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Netuno retrógrado

Não sou eu. É a Lua que está retrógrada em Peixes e Marte que está em confronto com Netuno. É que eu tento caminhar em linha reta, mas as curvas são mais sedutoras. Você sabia que a graça da vida é não seguir a coreografia? Um dia vi um vídeo na internet de uma garotinha dançando uma apresentação na escola, e ela roubou a cena porque não seguia a coreografia. Ela se divertia, dançava, adorava os sapatos de sapateado, e achava que estava seguindo a coreografia, mas não estava. Ela ria, a plateia ria, eu ri alto vendo a cena. Fiquei tão feliz em lembrar que a graça da vida é sapatear ao léo. ‘Sapateando na cara da sociedade’ poderia ser mais apropriado do que ‘Sambando na cara da sociedade’. Não que eu seja assim, vingativa e provocadora. Sou nada. Mas se dançasse hoje, com essa Lua retrógrada, era capaz de tropeçar e cair. Então vou ficar em casa. Depois a gente se vê.

Tem um vinho na adega e eu vou abrir para relaxar. Não estou nervosa, mas a ideia de relaxar depois de um dia como hoje me agrada. Tenho tido uns dias bons, leves. O trabalho está uma merda, continuo achando que estou desvalorizada, mas me divirto vendo como todo mundo tem suas angústias: você tinha que ver. É fácil saber, basta se concentrar nas pessoas e tentar captar suas angústias. Será? Você acha que sou eu? Eu que vejo a vida assim? Mas se eu a vejo assim, já está bom. Basta a vida ser assim para mim.

O abridor de garrafas que comprei está quebrado. É daqueles que você coloca a rosca, gira, gira, gira, os bracinhos vão abrindo e depois você só aperta os bracinhos de volta para perto do corpinho e a rolha – flupt – sai facinho. Mas ele está quebrado e não quer saber de abrir os bracinhos. O que fazer? Aquele momento em que você pensa: puxa, para isso que serve um homem? Será que desço 13 andares para pedir ao porteiro, às 3h, para abrir o vinho? "Olha, quebrou meu abridor, eu já enrosquei ele aqui, mas não consigo puxar, será que o senhor não abre para mim?" Poderia fazer isso, mas e depois da garrafa aberta?

Uma garrafa de vinho aberta é um perigo. As notas e os aromas flutuando no ar, você lá, sozinha, às 3h na portaria, ele também, sozinho. A educação mandaria oferecer um pouco. "Ah, obrigada por abrir. Quer um pouco?" E sabe-se lá o que ia acontecer. Não é que estou te oferecendo a minha companhia disfarçada de vinho, nem acho que você a queira a essa hora, mas é que preciso oferecer, você é que não pode aceitar. Diz não, vai. Fala não. Flupt. A rolha saiu enquanto eu puxava o abridor sozinha. Não preciso de ninguém para esta tarefa. Talvez Marte e Netuno não estejam mais em confronto.

Posso colocar meus óculos e olhar bem, mas não vou conseguir enxergar o que quer me dizer. Desculpe, não posso. Olha, já te disse que tentei conversar. Uma amiga tradutora me explicou um dia que a dificuldade do trabalho dela é encontrar palavras  que significam exatamente a mesma coisa, com o mesmo tom, em línguas diferentes. Ela me disse que nem sempre isso é possível. Agora, imagina traduzir um sentimento, uma ideia, uma sensação… Estamos neste ponto. Somos duas pessoas que falam a mesma língua mas não traduzem seus sentimentos em palavras que conseguimos compreender. Não duvido, eu sei, eu sinto que gosta (ou prefiro pensar que gosta). Aconteceu muita coisa, perdemos o foco. Não é figura de linguagem. Vi na National Geographic que o cérebro nos engana quando o assunto é visão. Ele se concentra em um ponto, faz o foco, e não vê o resto. Se tiver quatro bolas estáticas em uma tela com várias pontos luminosos coloridos e em movimento, e se você olhar só uma dessas bolas estáticas, as demais começam a desaparecer do seu campo de visão. É bem doido. É porque o cérebro entende que as outras bolas que você não está focando não fazem parte do mundo real, e então as apaga. Mas elas ainda estão ali. Nos concentramos nos pontos errados, talvez. Não vimos o resto. Aconteceu que acabou.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Fez três bolhas de sabão e sorriu

Com um sopro delicado, fez três bolhas de sabão e sorriu. O céu estava extremamente azul, eu estava deitado olhando para cima e vi seu rosto sobre o meu com o fundo claro azulado de um sábado de sol. "Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que não sei o nome", cantarolava. Havíamos ido para o parque passear e tirar o mofo do inverno de nossos corpos. Era, talvez, o primeiro sábado de sol de verdade depois de tantos dias cinza, com chuva.

"Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores". A gente levou uma canga de praia para o parque e escolheu um lugar entre a sombra e o sol. Os cachorros corriam para todos os lados, os donos se sentiam muito legais por terem cachorros, mas nós só tínhamos o tempo livre, um ao outro, e um copo com sabão e água para as bolhas que explodiam em meu nariz. "Passeio pelo escuro e presto muita a atenção no que meu irmão ouve e como uma ferida aberta um calo, uma casca protetora, ah, eu quero chegar antes"...

Eu não sabia, mas aquela talvez fosse a época em que fomos mais felizes. Nossos problemas eram poucos, e sabíamos. Nossas roupas eram apropriadas para todas as situações, e gostávamos. E, melhor que tudo, tínhamos um mundo de possibilidades a nossa frente: bastava sonhar, e o sonho poderia se realizar nos anos seguintes. Bastava sentir, e o amor era o mais sincero de todos os tempos. Bastava um beijo e a pele eriçava ao mínimo toque.

Tínhamos um fusca bege, que você chamou de Brigitte em homenagem à Bardot. O horóscopo era o nosso oráculo, líamos Caio Fernando Abreu como se fosse escrito por nós mesmos. Até conhecermos os nossos dragões, aqueles que não conhecem nem sabem nada de paraíso.